Numa viagem de autocaravana pelo país, o fotógrafo Jordi Llorella vai visitar e fotografar — com câmaras feitas a partir de malas de cartão — todas as estações e apeadeiros ferroviários. A ideia é “dignificar” as dificuldades encontradas pelos emigrantes, nas décadas de 50, 60 e 70, num projecto que vai ser exposto no Hotel de Santa Apolónia, em Lisboa.
--
Saudade: o sentimento é universal, mas a palavra é difícil de traduzir. A ideia mais próxima que Jordi Llorella encontra em castelhano é “o sentido de añoranza”. E apesar de esta palavra não constar no dicionário da sua língua materna, encontrou nela uma dimensão indissociável da realidade portuguesa: a emigração.
Casado com uma portuguesa, o fotógrafo catalão teve oportunidade de viver em Setúbal durante três anos e perceber que, em quase todas as famílias, havia alguém que tinha procurado noutro país oportunidades que este não oferecia. Por isso, quando foi convidado pela Sonae Capital (que detém o PÚBLICO) e pelo arquitecto Hugo Vieira, do gabinete Saraiva + Associados, para conceber uma intervenção no hotel que vai nascer na Estação de Santa Apolónia, em Lisboa, não teve dúvidas de que a emigração seria o tema central da intervenção.
Mas voltemos atrás. Quando, aos 17 anos, Jordi disse que, em vez de estudar, gostava de ir ao Carnaval do Rio de Janeiro, o pai não achou “uma ideia muito boa”. Fascinava-o, porém a ideia de viajar e, confessa, sempre procurou os projectos mais longe das suas fronteiras — o bairro onde nasceu, Poble Sec, em Barcelona, parecia-lhe “um pouco pequeno”. Foi também nessa altura que morreu o seu avô, deixando-lhe uma herança repleta de material fotográfico, que Jordi colocou nas malas. Começou a viajar e a fotografar. “Até agora.”
Rapidamente se deu conta que o que mais o vinculava à fotografia eram as câmaras estenopeicas (“as câmaras que eu próprio construo”, explica, com diferentes objectos, as chamadas pinhole). Agora, com 44 anos, continua certo de que é desta forma que pode “reivindicar a fotografia”, numa altura em que esta se tornou tão instantânea — o que, salvaguarda, tem vantagens. Mas esta ideia de “recuperar o acto fotográfico”, de observar, estudar o espaço e a luz, preparar o processo, agrada-lhe. As câmaras pinhole permitem-lhe libertar a “alma de criança” e jogar com o que tem à mão: quando a esposa não o vê, confessa, até vai espreitar o caixote do lixo e ver o que de lá pode aproveitar para criar uma câmara.
Como aplicar, então, as suas criações num projecto para um hotel português? “Comecei a ler muito sobre emigração portuguesa e de como os portugueses saíram, nos anos 50, 60 e 70, de diferentes pontos do país, com as suas malas de cartão, para Santa Apolónia, a única saída internacional do país”, conta, na sua autocaravana, estacionada junto à Estação de S. Bento, no Porto. O objectivo era, desde logo, abordar “um património social, os emigrantes, e um património arquitectónico, as estações e apeadeiros perdidos”.
Sendo a intervenção no Hotel de Santa Apolónia, fazia sentido não só mostrá-la, como mostrar os apeadeiros e as pequenas estações de aldeias destes emigrantes. E não havendo um “inventário de estações” portuguesas, foi através do Google Maps que conseguiu, estação por estação, ver o estado de cada uma delas. Decidiu trazer o conceito para a sua área de conforto, propondo-se a fotografá-las com câmaras pinhole feitas a partir do “objecto simbólico que são as malas de cartão” usadas pelos migrantes.
A proposta foi bem recebida e levou-o, pela primeira vez, a conceber um projecto numa autocaravana. Durante um mês, vai andar por todas as estações e apeadeiros do país, num veículo que é simultaneamente casa, automóvel e laboratório fotográfico. Nada que intimide o fotógrafo que já esteve um pouco por todo o mundo, incluindo sete anos a viver na Amazónia.
Mas faltava o factor humano, as pessoas. “Como íamos mostrar esses emigrantes?” Foi então que se lembrou de “uma história que se conta em Espanha”: “Muitos portugueses saíam do país clandestinamente e caminhavam até chegar aos Pirenéus. Lá, precisavam de um contrabandista que os levasse para França”, começa a relatar. Estes contrabandistas deixavam, muitas vezes, os emigrantes a meio do caminho. Por isso, e para se assegurarem de que o trabalho era cumprido, os portugueses “rasgavam uma foto-passe a meio”: metade ficava com uma pessoa de confiança em Espanha, outra ficava na sua posse. Ao chegar a França, enviavam a metade que tinham consigo por correio. “Quando as duas metades se juntavam em Espanha, queria dizer que o contrabandista tinha feito o seu trabalho e que podiam, então, pagar-lhe.”
O trabalho não podia deixar de ter em conta “essa dificuldade da emigração portuguesa”, que Jordi queria, de alguma forma, “dignificar”. Com a ajuda de uma paróquia em Setúbal, conseguiu localizar pessoas que saíram do país e pediu-lhes uma foto-passe para que fosse rasgada, num gesto simbólico. “Também é verdade que numa sociedade como a portuguesa, tão familiar, a emigração não deixa de ser uma ruptura.”
Será desta forma que 130 retratos de antigos emigrantes irão surgir na intervenção, que deverá coincidir com a abertura do hotel, marcada para Setembro de 2021. Outras tantas imagens serão as que anda a recolher por todo o país, num processo fotográfico, no mínimo, peculiar: a mala de cartão é colocada no ponto correcto; depois, consoante a luz, Jordi estuda o tempo necessário para captar a imagem. Retira a fita que cobre uma abertura na mala, onde se vê um pedaço de lata de refrigerante com um furo milimétrico: é por lá que entra a luz necessária para gravar a imagem no papel fotográfico que está colado na parte de trás da mala. Alguns segundos depois, volta a tapar a abertura.
Esta é a primeira fase do processo. Segue-se o tratamento dos negativos, feito na minúscula casa de banho da autocaravana, que divide com um companheiro de viagem. Posteriormente, monta um estendal improvisado, onde as deixa penduradas (e faz figas para que o vento não o obrigue a correr atrás delas, como, efectivamente, já aconteceu). Quando estão prontas, coloca-as dentro da Sagrada Bíblia — que serve tanto de “reconforto espiritual”, como de peso para “passar as fotografias a ferro”. Depois, é só passá-las pelo scanner... et voilá! Nascem imagens digitais a partir de uma mala de cartão.
“Quando vemos o resultado em positivo, decidimos se o caminho vai bem ou não. Há que pensar que são umas câmaras que dão muitos erros, e é necessário obter resultados diários”, refere. No final, escolher cento e poucas imagens não vai ser tarefa fácil, principalmente pelos “tesouros perdidos” que lhe “mexem com o esquema” — o que aconteceu especialmente na linha do Douro.
Até ao início de Abril, quando prevê acabar a viagem, em Castro Marim, ainda irá, certamente, descobrir uns quantos tesouros e outros tantos erros: afinal, “tudo isto é muito experimental”. A jornada é cansativa (começa, todos os dias, às 5h30), longa, e cheia de incertezas. Mas com muitas mais certezas. “Às 20h estamos a dormir. Isso é certo.”